Eu, troca-letras, um texto que me emocionou muito e que publico aqui para guardar como está guardado em meu coração. Escrito por minha amiga mais que amada, Marina Mercante, em sua pós-graduação em Jornalismo Literário, me descreves por inteira até hoje! Te amo, Ma! Obrigada sempre!
Brasília – 2º
bim – Marina Mercante/ Outubro de 2006
A troca-letras
Na estante, um CD de músicas para ninar ao lado de
uma coletânea do Raul Seixas. Em posição de destaque, os discos do Paulinho
Moska, mostrando que eles são tocados com freqüência. No mesmo ambiente, uma
fila de livros sobre comunicação social, política, redação. Os sinais visíveis
de que naquele quarto dorme uma mulher adulta são poucos. A estante de livros e
discos é o principal. Além dela, só mesmo abrindo as gavetas e as portas do
guarda-roupa.
No mais, objetos infantis predominam. Brinquedos
espalhados pelo chão, um peixe de pelúcia azul e amarelo em cima da cama e uma
toalha da Cinderela estendida no arame do berço. Na parede do quarto, há a
pintura de uma menina de cabelos curtos e dourados em um jardim. Pacientemente,
ela assopra uma flor branca, sentada perto de uma árvore com flores de várias tonalidades.
O quadro está logo acima de uma cômoda clara com maçanetas em forma de estrelas
e luas, sobre a qual estão dispostos nove porta-retratos, todos eles com
fotografias que registram momentos dos quase quatro anos de vida da pequena
Maria, filha da protagonista desta história, Líllian. Até mesmo o nome completo
da personagem remete ao universo infantil, das histórias em quadrinhos da Turma
da Mônica. Líllian Bento. Sobrenome que dá margem a brincadeiras do tipo: você
é primo do Chico Bento ou o quê?
O dia-a-dia da jovem jornalista é como o próprio quarto
em pleno domingo à noite: bagunçado, mas colorido. Ela sabe fazer render as 24
horas de cada dia, para que tenha tempo para fazer tudo o que precisa: cuidar
da Maria, ser jornalista e aproveitar os 20 e poucos anos de vida. Mais
exatamente, 23, completados em março passado.
A gravidez precoce aconteceu ainda na faculdade,
quando Líllian estava no 2º ano de comunicação social na Universidade Federal
de Goiás (UFG) e começou a namorar um colega. O namoro começou no dia do meu
aniversário, logo após uma festinha em um restaurante de Goiânia. E foi no dia
do aniversário da Líllian, em outro restaurante da cidade, que fui a primeira
pessoa a saber que ela estava grávida. Maria nasceu em novembro de 2002.
Encontros e Desencontros
Em julho, eu estava empolgada porque passaria um
final de semana completo em Goiânia. Liguei para Líllian dias antes, combinei
tudo e fizemos planos. No dia anterior à minha viagem, no entanto, recebi um
telefonema com DDD 62. Era ela, dizendo que estava inscrita em um curso de
capacitação para jornalistas com o tema Cobertura das Eleições e que viria para
a Capital Federal passar sexta e sábado! Como eu precisava ir a Goiânia por
conta de um casamento, o resultado foi uma troca de cidades. Ela se hospedou no
meu apartamento e ficou sozinha por um dia (minha irmã, que mora comigo, também
viajou).
Por um instante, fiquei chateada com o desencontro,
mas analisando a situação percebi como aquilo tudo tinha a cara da Líllian.
Quantas vezes combinamos alguma coisa e ela desmarcou na última hora, sempre
com um forte motivo. “Não tenho culpa, o jornal que me escalou”. Acabei achando
graça. Passar um final de semana juntas despendia todo um planejamento
estratégico, por causa da nossa profissão, que brinca com o tempo. E lá estava
ela, sozinha no meu apartamento, cuidando do meu peixe beta, que precisa ser
alimentado diariamente. Quando ela voltou a Goiânia, teve tempo ainda de me
contar que havia batizado o peixe de “Jhonny” e que tinha criado um vínculo
emocional com o bichinho de estimação. “Que dó deixá-lo sozinho”.
Demonstrações de carinho como essa são novidades
para Líllian e ela admite isso. Quando era mais nova, foi criticada por ter
dificuldades em abraçar, beijar e dizer “eu te amo” para parentes, amigos e
namorados. Com o nascimento da filha, essa distância entre sentir e demonstrar
ficou menor. Mas nada em exagero. Líllian tem mais afinidade com as palavras e
escrever é o melhor jeito que ela encontra para usá-las bem.
“Saí do jornal
por volta de 22 horas. Em minutos estava na companhia confortante da pequena
Maria. Ao me ver machucada ela virou-se de lado e chorou. ‘Fiquei triste porque
você machucou’, disse entre lágrimas sentidas e o abraço mais gostoso que há no
mundo. Ouvi tudo como se escutasse música clássica. A voz mais linda me contava
os feitos mais interessantes do mundo. Fomos dormir. Depois de todo o stress de
ter sido atropelada, fechei os olhos. Minutos depois os abri com a certeza de
que veria a pequena já adormecida. Mas para minha surpresa, vi que os pequenos
olhos me observavam. Por alguns minutos ela vigiou meu sono e ao me ver abriu
um lindo e doce sorriso. E com magia plena me abraçou e encheu meu rosto de
beijos. Os melhores do mundo. Naquele instante pensei: pode me faltar tudo, se
sobrar esse sorriso meu mundo está completo. Não há atropelamento que me tire
essa alegria e que abale esse amor”.
O trecho acima faz parte de um texto que está no blog da mãe da Maria. É no diário
eletrônico também que ela desabafa sobre os anseios, as frustrações da vida
profissional, embalada pelas experiências na cobertura diária de política para
um jornal de grande circulação em Goiás.
“O
poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente” Fernando Pessoa
Fã declarada do
enigmático poeta e escritor português responsável pelos versos acima, Líllian
não consegue fingir. Nem mesmo o registro de atriz profissional que ela tem
desde a época de escola facilita qualquer tipo de atuação quando está lidando
com a vida real. A autenticidade sempre prevalece. Se está nervosa, deixa transparecer de
forma bem clara. Se algo a incomoda, não hesita em dizer. Se fica alegre, exala
euforia. Pode até evitar as lágrimas, mas demonstra que por dentro está
fervendo. Em geral, as frases são ditas por Líllian antes que ela conclua o
pensamento.
Troca-letras
Há, entre a tribo de jornalistas
brasileiros, uma forma carinhosa – ou seria irônica – de apelidar esses
profissionais: “troca-letras”. A denominação se deve ao uso contínuo da língua
portuguesa, ferramenta de trabalho para qualquer um que exerce a profissão,
independente do veículo. A Líllian faz isso literalmente. Mas em vez de letras,
ela troca as palavras. Tem uma facilidade para esquecer as coisas (para não
dizer dificuldade em lembrar) e troca os vocábulos com freqüência, deixando o
interlocutor da conversa bastante confuso. Coisas do tipo: “espera que eu vou
trocar a Maria da fralda" ou "corta o telefone enquanto eu atendo a
pizza". Diversão garantida.
Na semana em que eu preparava este
perfil, tive o mais recente exemplo desse jeito “desmemoriado” de ser. No
início da tarde de uma segunda-feira, ela deixou a filha na escola e foi em
direção ao ponto de ônibus. Foi atropelada por um carro enquanto atravessava a
faixa de pedestres, com o semáforo indicando a luz vermelha. Por sorte, sofreu
apenas alguns ferimentos externos e pôde trabalhar no mesmo dia. À noite,
quando ela me ligou para contar o que tinha acontecido, soltou a máxima: “Eu
atravessei o ônibus e peguei a rua”. Na seqüência, soltou gargalhadas. O que ela
queria mesmo dizer era que havia atravessado a via pública e tomado o coletivo,
que a levaria ao jornal onde trabalha. Simples.
Sempre imaginei como seria a elaboração
de uma matéria jornalística pela minha amiga “troca-letras”. Cheguei a
perguntar-lhe se trocava muito as palavras enquanto fazia as entrevistas. Ela
me respondeu que realmente fazia algumas confusões ao conversar com os
entrevistados, mas que, ao final do texto, tudo se resolvia.
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