quarta-feira, julho 02, 2014

Eu, a troca-letras, por Marina Mercante!



Eu, troca-letras, um texto que me emocionou muito e que publico aqui para guardar como está guardado em meu coração. Escrito por minha amiga mais que amada, Marina Mercante, em sua pós-graduação em Jornalismo Literário, me descreves por inteira até hoje! Te amo, Ma! Obrigada sempre! 

Brasília – 2º bim – Marina Mercante/ Outubro de 2006


A troca-letras

Na estante, um CD de músicas para ninar ao lado de uma coletânea do Raul Seixas. Em posição de destaque, os discos do Paulinho Moska, mostrando que eles são tocados com freqüência. No mesmo ambiente, uma fila de livros sobre comunicação social, política, redação. Os sinais visíveis de que naquele quarto dorme uma mulher adulta são poucos. A estante de livros e discos é o principal. Além dela, só mesmo abrindo as gavetas e as portas do guarda-roupa.

No mais, objetos infantis predominam. Brinquedos espalhados pelo chão, um peixe de pelúcia azul e amarelo em cima da cama e uma toalha da Cinderela estendida no arame do berço. Na parede do quarto, há a pintura de uma menina de cabelos curtos e dourados em um jardim. Pacientemente, ela assopra uma flor branca, sentada perto de uma árvore com flores de várias tonalidades. O quadro está logo acima de uma cômoda clara com maçanetas em forma de estrelas e luas, sobre a qual estão dispostos nove porta-retratos, todos eles com fotografias que registram momentos dos quase quatro anos de vida da pequena Maria, filha da protagonista desta história, Líllian. Até mesmo o nome completo da personagem remete ao universo infantil, das histórias em quadrinhos da Turma da Mônica. Líllian Bento. Sobrenome que dá margem a brincadeiras do tipo: você é primo do Chico Bento ou o quê?
O dia-a-dia da jovem jornalista é como o próprio quarto em pleno domingo à noite: bagunçado, mas colorido. Ela sabe fazer render as 24 horas de cada dia, para que tenha tempo para fazer tudo o que precisa: cuidar da Maria, ser jornalista e aproveitar os 20 e poucos anos de vida. Mais exatamente, 23, completados em março passado.

A gravidez precoce aconteceu ainda na faculdade, quando Líllian estava no 2º ano de comunicação social na Universidade Federal de Goiás (UFG) e começou a namorar um colega. O namoro começou no dia do meu aniversário, logo após uma festinha em um restaurante de Goiânia. E foi no dia do aniversário da Líllian, em outro restaurante da cidade, que fui a primeira pessoa a saber que ela estava grávida. Maria nasceu em novembro de 2002.

Encontros e Desencontros

Em julho, eu estava empolgada porque passaria um final de semana completo em Goiânia. Liguei para Líllian dias antes, combinei tudo e fizemos planos. No dia anterior à minha viagem, no entanto, recebi um telefonema com DDD 62. Era ela, dizendo que estava inscrita em um curso de capacitação para jornalistas com o tema Cobertura das Eleições e que viria para a Capital Federal passar sexta e sábado! Como eu precisava ir a Goiânia por conta de um casamento, o resultado foi uma troca de cidades. Ela se hospedou no meu apartamento e ficou sozinha por um dia (minha irmã, que mora comigo, também viajou).

Por um instante, fiquei chateada com o desencontro, mas analisando a situação percebi como aquilo tudo tinha a cara da Líllian. Quantas vezes combinamos alguma coisa e ela desmarcou na última hora, sempre com um forte motivo. “Não tenho culpa, o jornal que me escalou”. Acabei achando graça. Passar um final de semana juntas despendia todo um planejamento estratégico, por causa da nossa profissão, que brinca com o tempo. E lá estava ela, sozinha no meu apartamento, cuidando do meu peixe beta, que precisa ser alimentado diariamente. Quando ela voltou a Goiânia, teve tempo ainda de me contar que havia batizado o peixe de “Jhonny” e que tinha criado um vínculo emocional com o bichinho de estimação. “Que dó deixá-lo sozinho”.

Demonstrações de carinho como essa são novidades para Líllian e ela admite isso. Quando era mais nova, foi criticada por ter dificuldades em abraçar, beijar e dizer “eu te amo” para parentes, amigos e namorados. Com o nascimento da filha, essa distância entre sentir e demonstrar ficou menor. Mas nada em exagero. Líllian tem mais afinidade com as palavras e escrever é o melhor jeito que ela encontra para usá-las bem.

“Saí do jornal por volta de 22 horas. Em minutos estava na companhia confortante da pequena Maria. Ao me ver machucada ela virou-se de lado e chorou. ‘Fiquei triste porque você machucou’, disse entre lágrimas sentidas e o abraço mais gostoso que há no mundo. Ouvi tudo como se escutasse música clássica. A voz mais linda me contava os feitos mais interessantes do mundo. Fomos dormir. Depois de todo o stress de ter sido atropelada, fechei os olhos. Minutos depois os abri com a certeza de que veria a pequena já adormecida. Mas para minha surpresa, vi que os pequenos olhos me observavam. Por alguns minutos ela vigiou meu sono e ao me ver abriu um lindo e doce sorriso. E com magia plena me abraçou e encheu meu rosto de beijos. Os melhores do mundo. Naquele instante pensei: pode me faltar tudo, se sobrar esse sorriso meu mundo está completo. Não há atropelamento que me tire essa alegria e que abale esse amor”.

O trecho acima faz parte de um texto que está no blog da mãe da Maria. É no diário eletrônico também que ela desabafa sobre os anseios, as frustrações da vida profissional, embalada pelas experiências na cobertura diária de política para um jornal de grande circulação em Goiás.

 “O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente” Fernando Pessoa

Fã declarada do enigmático poeta e escritor português responsável pelos versos acima, Líllian não consegue fingir. Nem mesmo o registro de atriz profissional que ela tem desde a época de escola facilita qualquer tipo de atuação quando está lidando com a vida real. A autenticidade sempre prevalece. Se está nervosa, deixa transparecer de forma bem clara. Se algo a incomoda, não hesita em dizer. Se fica alegre, exala euforia. Pode até evitar as lágrimas, mas demonstra que por dentro está fervendo. Em geral, as frases são ditas por Líllian antes que ela conclua o pensamento.

Troca-letras

Há, entre a tribo de jornalistas brasileiros, uma forma carinhosa – ou seria irônica – de apelidar esses profissionais: “troca-letras”. A denominação se deve ao uso contínuo da língua portuguesa, ferramenta de trabalho para qualquer um que exerce a profissão, independente do veículo. A Líllian faz isso literalmente. Mas em vez de letras, ela troca as palavras. Tem uma facilidade para esquecer as coisas (para não dizer dificuldade em lembrar) e troca os vocábulos com freqüência, deixando o interlocutor da conversa bastante confuso. Coisas do tipo: “espera que eu vou trocar a Maria da fralda" ou "corta o telefone enquanto eu atendo a pizza". Diversão garantida.

Na semana em que eu preparava este perfil, tive o mais recente exemplo desse jeito “desmemoriado” de ser. No início da tarde de uma segunda-feira, ela deixou a filha na escola e foi em direção ao ponto de ônibus. Foi atropelada por um carro enquanto atravessava a faixa de pedestres, com o semáforo indicando a luz vermelha. Por sorte, sofreu apenas alguns ferimentos externos e pôde trabalhar no mesmo dia. À noite, quando ela me ligou para contar o que tinha acontecido, soltou a máxima: “Eu atravessei o ônibus e peguei a rua”. Na seqüência, soltou gargalhadas. O que ela queria mesmo dizer era que havia atravessado a via pública e tomado o coletivo, que a levaria ao jornal onde trabalha. Simples.

Sempre imaginei como seria a elaboração de uma matéria jornalística pela minha amiga “troca-letras”. Cheguei a perguntar-lhe se trocava muito as palavras enquanto fazia as entrevistas. Ela me respondeu que realmente fazia algumas confusões ao conversar com os entrevistados, mas que, ao final do texto, tudo se resolvia.

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