segunda-feira, dezembro 07, 2020

Encruzilhada








Daqui de dentro, meu passado parece distante demais. 
O futuro ainda vislumbro em desfoque. Um borrão.
Jamais estive tão presente.
Justo agora que estou tão cercada de ausências.
Nunca foi destino.
Sempre foi travessia.
É na encruzilhada que a vida acontece.


Goiânia, dezembro de 2020.





terça-feira, outubro 13, 2020

Você, Caymmi e aquele domingo de manhã em Itapuã




Você atravessou a rua para ir até a estátua de Dorival Caymmi. Nem me lembro o que foi fazer lá, só sei que fotografei você em meio a beleza e ao caos de Itapuã. Carros, mar, sol, suor, vento, pagodão, funk e você a atravessar a rua em câmera lenta. Você estava tão bonito aquele dia que se soubesse estragaria tudo, então, me calei e só contemplei. 

A fotografia ainda guardo em meio a tantas outras em meu celular, mas o mais bonito registro daquele dia está em minha memória. Porque é onde sua imagem se mistura ao gosto de cerveja da sua boca, às  memórias de seus lábios macios. Aquele cheiro de luxúria, bem querer e boemia. Você estava tão falante, até mais que o normal. Falava tanto, tanto, tanto que até eu que também sou verborrágica, me fiz contemplativa. Eu te ouvia, um pouco bêbada e era domingo de manhã. Eu desejei permanecer ali, naquela mistura de sol, areia, suor, ressaca e trocas intensas.  

Mas sempre soube que não permaneceria. Não! Você já havia dito que não. Depois disse que sim. Eu já havia dito que não. Depois disse que sim. Nós já tínhamos combinado que não e nunca que sim. Então, não! Seria apenas quando desse, se desse até porque nem todos os encontros eram poéticos como aquele. Você é caos. Confusão e gritaria. Era e não era. E minha impaciência me despertou para alguma sensatez. 

Mas não naquele dia. Aquele dia era a despedida, mas ninguém de nós sabia. Tinha um quê de despedida, um gosto de despedida, mas ninguém de nós sabia! Tomamos uma, duas, três cervejas no café da manhã. A despedida não queria acontecer, mas depois de várias cervejas e alguns cigarros você entrou naquele ônibus e se foi. Eu voltei pra casa, pra cama que ainda tinha seu cheiro e esse cheiro nunca saiu de lá. Eu sai. Me mudei. Depois veio o carnaval e por fim o caos da pandemia. 2020!!!

Não nos vimos mais, nem sei dizer se voltaremos a nos encontrar. É 2020 e nenhuma previsão pode haver, mas agradeço tanto a beleza daquele último encontro.  Você e Dorival Caymmi na praia de Itapuã.  Mesmo que eu nunca mais repouse meu olhar em seus olhos profundos e nunca mais sinta a textura de seus lábios (e que saudade deles!), ainda assim terá sido um dos melhores últimos encontros dessa trajetória que é a vida. 

Não importa o que não deu certo, importa o que deu. O encontro aconteceu. Sou grata. Teu lugar em meu coração será sempre de acolhimento, moradia e afeto. Um viva aos afetos. Que  logo a vida volte a ser intensa! Que os olhares se entrelacem, que a gente volte aos abraços demorados. Que a vida volte a pulsar porque somos "amor da cabeça aos pés". 

Lillian



quinta-feira, junho 11, 2020

A democracia sangra. #ForaBolsonaro

Há gosto de sangue na garganta
Sinto uma dor imensa.
Meus olhos derramam
Incontroláveis lágrimas
Um golpe
Outro golpe
Já não sei de onde vêm
Sei que dói

Dói por esse Brasil de quase 40 mil mortos
Dói por essa falta de perspectiva
Pessoal e coletiva
Dói ver o poder corrosivo se espalhar
Dói ver a fome voltar a matar
Dói ver o racismo avançar

Lá em 2018 tanta gente digitou 17 naquela urna
Acionaram o botão da destruição
que agora parece incontrolável

Dói e essa dor é física
Aperta o peito
Corrói

Todo dia várias perdas
E há perdas tão profundas...
Nossos peitos estão abertos
Repleto de chagas
Ardem

Só não chora quem está do outro lado
Desses quero distância

Do lado de cá meus olhos seguem inchados
Meus parceiros estão distantes
Sinto falta dos abraços
Todos amargam essa dor corrosiva

Mas quando essa escuridão passar
Vamos andar por aí de novo
corações machucados,
mas cabeças erguidas

Honrando os que partiram
Nos ajudando, reconstruindo
Destroçados estamos, mas com a certeza
de que não desistimos do mais importante
da luta por igualdade,
por Democracia
E de ter esperança,
De resistir até o último suspiro,
mesmo que agora sangre tanto.

Vai passar.

Lillian Bento
11.06.2020

#ForaBolsonaro
#FascistasNãoPassarão
#VidasNegrasImportam
#QuemMandouMatarMarielle
#BolsonaroGenocida

Torcedores do Corinthians impedem manifestação pró Bolsonaro na ...

sábado, março 07, 2020

Daquele olhar que se derrama


Havia um brilho quase ausente naquele olhar opaco
Como um óculos de lentes embaçadas
a cobrir o verdadeiro olhar daquele homem

Essa opacidade parecia o proteger
Afinal, o brilho do olhar nos expõe em demasia
Revela nossos desejos e medos mais profundos
Nos coloca no cerne da vulnerabilidade

Deitado naquela cama, ele me olhava atravessado
E me atravessava com o olhar arredio e inquieto
Dizia querer ficar, mas seu olhar entregava o contrário

O desejo era ter ao longe dali
Porque despir-se seria demais
E olhar profundamente é despir-se

Fumou um ou dois cigarros e partiu
Despediu-se com um olhar flutuante
Atrás das lentes embaçadas vi um brilho guardado
Aqueles olhos escuros eram como represas de desejos e segredos

Desejei ardentemente alcançá-los, mas recuei.
Guardei na memória
Como a fotografia em branco e preto de um oceano revolto.
Atiçou em mim uma curiosidade que se move igual Corisco. 

(Salvador. Bahia. 07 de março. 2020)