quarta-feira, abril 09, 2008

Ainda bem!

Seguia na avenida movimentada e florida a prestar atenção no contraste dos carros apressados com as flores serenas e belas do canteiro central que dividia a via। Perfeita harmonia de cores e formas ignoradas por quem passava. Cena típica de uma tarde quente de segunda-feira. Meus pensamentos oscilavam entre atividades práticas que precisava cumprir rapidamente antes de ir para o jornal e a descrença de que todos aqueles passos não me levariam (tão cedo) para onde quero estar. Desesperança e saudade me sufocavam a alma, enquanto o suor descia pelo corpo.

Senti raiva। Dei um nó nos cabelos.

Em um dos bancos do canteiro central algumas pessoas aguardavam o tempo passar। Três senhoras, de aproximadamente 40 anos, discutiam novelas e liam matérias fúteis de uma revista de fofocas qualquer. Pensei: que horror! Aumentou a raiva. Como esse "jornalismo" de tititi tem tanto espaço no mundo, justo em um mundo com tantas coisas mais importantes para serem discutidas.

Mas em outro banco, um senhor sozinho lia atentamente um livro e a cena seduziu meu olhar। O corpo franzino e as mãos sujas de cal e cimento eram indícios de que saira há pouco do trabalho. Provavelmente um trabalho braçal. Pedreiro, talvez. Mas as mesmas mãos seguravam um livro que trazia na capa o carimbo da Biblioteca Municipal. Diminui o ritmo dos passos. Olhei disfarçadamente o conteúdo do livro. Não consegui ler o título, mas tratava de mitologia grega. Encantada - por gostar muito de mitologia grega -parei.

Ele olhou para mim. Percebeu que eu olhava com curiosidade para o livro। Eu o cumprimentei com um sorriso. Ele retribuiu. Rosto enrugado, com marcas de cal e um sorriso tímido. Nesse movimento consegui ver que lia sobre Apolo, o deus grego da beleza, da juventude e da luz - um jovem alto e bonito considerado patrono das artes. Lembrei-me da figura de Apolo e do livro que li sobre o deus aos 10 anos de idade, quando iniciava a 5ª série. Olhei de novo e percebi o contraste entre aquele homem de meia idade, que trazia no rosto marcas de uma vida sofrida, e o deus grego, símbolo da beleza e virilidade masculinas.

Olhei para as flores do canteiro e voltei a ouvir o zunido dos carros passando. Estava atrasada. Passei apressadamente sem me despedir do senhor. Olhei pra trás. Para o homem com o livro e para a rua com seus carros e flores. E pensei: ainda bem! Passou a raiva. Decidi ler de novo o livro da 5ª série. Ao menos em pensamento confortei minha saudade - minha companheira dos últimos tempos - e desejei não matar minha esperança. Espero rever aquele homem, que por um momento, foi tão bonito quanto às flores do canteiro central. (Lillian Bento)

4 comentários:

Leandro Coutinho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Leandro Coutinho disse...

Tá, eu escrevo de novo.
Há quem diga que é mais fácil levar a vida de olhos fechados. Digo que não. Difícil é olhar para os carros diante de tantas flores e do velhinho que lê Apolo. Perder a chance de perceber aquele sorriso verter da literatura grega. Eis o olhar insubordinado que transforma um jornalista em transformador de seu universo. Eis Lillian.

Leandro Coutinho disse...

Continuo escrevendo.

Júnior de Paiva / Dish disse...

às vezes topo com pessoas e fico sem perguntar o nome delas...
por medo?
Talvez...
mais ai lembro que a cidade é pequena...e um dia(será?) topo com elas...sem identificar as suas faces que faço questão de apagar fortemente...

como parte deste meu poema:
"As pessoas cruzam por mim na rua, sem rosto, sem face, entre todos eles estão os meus sem nexo.

Não consigo enxergar suas faces, transparentes e embaçadas."